“A psicanálise é possível de ser feita com o divã. E também é possível uma psicanálise para além do divã.”
A psicanálise só se faz com um divã.
Essa é uma premissa que muitas pessoas sustentaram durante muito tempo. É importante revisar a história da psicanálise para ver se essa premissa é uma premissa a priori, ou seja, que exclui qualquer outra possibilidade.
É sobre isso que o professor Daniel Omar Perez nos fala neste episódio do ESPECast, que você pode assistir no YouTube ou ouvir no Spotify.
Afinal, análise só com divã?
Muitas vezes se faz uma caricatura da psicanálise: um sujeito fumando um cachimbo ou uma mulher de óculos, sentada em uma poltrona, que anota em um caderninho o que o paciente fala, deitado em um divã, do lado de trás ou na frente dele. Mas é sempre assim: o sujeito está deitado em um divã.
Essa caricatura da psicanálise não se limitou a ser apenas uma piada. Em muitos grupos de formação psicanalítica se entendia que, em um setting analítico, a figura do divã era imprescindível, representando a passagem decisiva, fundamental de entrada em análise do sujeito. O divã então ficou marcado como elemento decisivo que denominava se existia ou não análise ali.
A psicanálise não nasceu com um divã
Quando se revisita a história da psicanálise, porém, vê-se que ela não nasce com um divã. Freud começou a atender os casos clínicos de histeria nos leitos de hospital, muitas vezes nas camas das próprias pacientes. Isso se dava porque se tratava de uma situação de sintomas, muitas vezes de conversões histéricas, que diretamente impossibilitava qualquer tentativa de condução dessa paciente a um consultório analítico e a sua colocação em um divã.
“Os próprios sintomas da neurose histérica impediam o uso do divã.” – nos conta Daniel.
Isso significaria que Freud não fazia psicanálise? Que se tratava de casos clínicos iniciais e que não se sabia o que fazer? Essa era uma época em que também se praticava a hipnose com os pacientes, coisa que a psicanálise abandona depois.
O método catártico via hipnose, portanto, é abandonado e substituído pelo método psicanalítico, que consiste na associação livre produzida em um set, em um lugar, em um espaço e em um tempo onde o analisante fala e o analista se coloca em posição de escuta. Para maiores detalhes sobre o método da psicanálise, visite o post: O método psicanálitico.
Neste sentido, Freud introduz o divã e tem seus argumentos para a introdução dele. Mas isso não exclui as outras formas de atendimento praticadas. Ele continuava tendo pacientes internados e continuava tendo pacientes doentes atendidos em suas casas. Não somente ele, mas todos os outros psicanalistas.
“Portanto, então, o divã foi um elemento importante porque marcava, de algum modo, quais eram os elementos do set, quais eram os elementos clínicos que suportavam, de alguma forma, o trabalho analítico. Mas não se restringia apenas a isso. Então, o divã subsistiu, permaneceu, de alguma forma, junto com o leito de hospital, a cama do paciente em sua casa.” - pontua Daniel, salientando que isso não para por aqui.
As clínicas públicas e o tratamento com crianças
Nas clínicas públicas – que os psicanalistas e o próprio Freud favoreciam e eram trabalhos de atendimentos realizados em policlínicas, em dispensários, em prontos-socorros, em convênios com prefeituras ou em acordo com associações de operários - nem sempre era possível se ter ali a presença do divã. Assim, a pessoa tentava levar adiante um trabalho clínico nas condições em que se encontrava.
A questão avança também com o tratamento com as crianças, que não funciona, de fato, levando-as para um divã.
Assim, o analista tem que lidar com o analisante de uma outra forma. Ele precisa encontrar a possibilidade de instauração da associação livre, assim como a possibilidade de emergência do inconsciente e de elaboração daquilo que advém dele no set da análise de uma forma que não se dê necessariamente em um divã.
“ A psicanálise com crianças abre um outro espaço. Existem creches, existem lugares onde o analista trabalha no chão junto com a criança, brincando junto com a criança e, a partir da brincadeira, produz efeitos analíticos que, de algum modo, permitem que o recordar e o elaborar do processo analítico aconteçam. E aconteçam não no divã, onde entendemos que deva ser, mas na brincadeira junto com as crianças.” – diz Daniel.
Rosine e Robert Lefort
Avançando na história da psicanálise, e da psicanálise com crianças, Daniel nos aponta no episódio que “podemos lembrar os casos clínicos de Rosine e Robert Lefort, quando Rosine atende os célebres casos diagnosticados de autismo, que estão registrados no livro “O Nascimento do Outro.”
Rosine Lefort — nos ensina Daniel — é uma psicanalista, que está fazendo seu trabalho de formação com Jacques Lacan. Ela realiza seu trabalho clínico em um hospital, mais precisamente nos leitos de hospital onde seus pacientes se encontram, algumas vezes mal conseguindo sentar-se ou mantendo a rigidez muscular necessária para que se ajeitem na cama. A partir daí — de um leito de hospital — Rosine Lefort leva adiante uma clínica fundamental para tudo que virá depois acerca de psicanálise com pacientes diagnosticados com autismo.
“Então vemos que o divã funciona em alguns casos, mas não em todos. Nós vemos que o divã é necessário em alguns casos, em outros serão necessários outros elementos.” — Daniel Omar Perez.
O set analítico, então, vai se compondo, não como uma condição a priori, de elementos a priori que devem ser colocados em jogo, mas como elementos a priori que se articulam com a própria singularidade do caso. O divã, o leito do hospital, o leito da casa, o chão, as brincadeiras, são, então, diferentes formas de se lidar com os pacientes, respondendo e acolhendo a sua singularidade e colocando, assim, em jogo, os elementos clínicos do set analítico.
Na década de 1960 observamos também as experiências de psicanálise em grupo. Muitos entendem que a psicanálise de grupo não é possível, por se referir a um fenômeno de alienação, do qual é muito difícil de se sair para que uma análise se produza.
Assim, existem casos, datados e documentados, sobre a aplicação de elementos da psicanálise em uma clínica com divã, em uma clínica sem divã, em uma clínica, não apenas de neuróticos obsessivos e neuróticos histéricos, mas também de psicóticos, paranoicos, esquizofrênicos e perversos. Também há uma clínica dos diagnosticados com autismo e, como aponta Daniel, um trabalho clínico em periferias, como o feito por Enrique Pichón Riviere, na Argentina.
“Aí poderíamos dize: Bom, mas Pichon Rivière começou com psicanálise e mudou, fez outra coisa.” - comenta. “Talvez seja assim, talvez Pichon Rivière tenha feito outra teoria, a partir dos elementos clínicos da psicanálise, que tinha a ver com uma clínica que, de algum modo, acolhia as situações particulares, peculiares da periferia de Buenos Aires, dos loucos de Buenos Aires. A partir daí ele precisou inventar outras situações.”
Marie Langer e a psicanálise para além do divã
Daniel cita a psicanalista Marie Langer.
Marie Langer migrou da Europa para a Argentina e trabalhou com associações de operários, com pessoas marginalizadas, fazendo uma clínica que ela, mais tarde, chamou de “Psicanálise para Além do Divã”, uma experiência clínica que ela realizou, não somente na Argentina, mas depois na Nicarágua dos anos 80.
“Ela fazia psicanálise na zona rural, onde, evidentemente, não havia nenhum divã. Ela trabalhou pessoas que se preocupavam, que acolhiam os fenômenos e os conflitos psíquicos, tentando formar essas pessoas a partir dos dispositivos fundamentais da clínica psicanalítica e fazendo na Nicarágua uma clínica psicanalítica para além do divã, não apenas na floresta, mas também na cidade, onde também não havia nenhum divã.” – conta Daniel.
Dessa forma, Marie Langer e os psicanalistas que trabalhavam com ela na Nicarágua, produziam efeitos de análise que não se encontravam, nem em uma relação hospitalar, nem em uma relação de consultório privado. Esses efeitos se produziam, muitas vezes, em caminhadas, pelas trilhas de uma floresta ou através do compartilhamento de um trabalho, onde poderia se abrir a possibilidade tanto de uma fala, quanto de uma escuta.
“Nesse sentido, Marie Langer é alguém que é muito interessante para podermos pensar hoje a psicanálise nos tempos que tocam viver.” – Daniel Omar Perez
No episódio #72 do ESPECast, Daniel nos conta mais sobre a vida de Marie Langer.
Tempos pandêmicos
Diante da pandemia de Covid-19, que vivemos do início de 2020 até meados de 2022, os psicanalistas se encontraram em uma situação muito particular.
Muitos países, como sabemos, impuseram questões de isolamento de quarentena, condições que se estenderam por bastante tempo. Muitos dos tratamentos, dos trabalhos, dos encaminhamentos clínicos não podiam ser interrompidos por tempo indefinido. Foi preciso então reformular, rapidamente, o setting de análise.
“Para isso começaram a trabalhar com elementos que tinham à mão.” – narra Daniel, pontuando que “estes foram os elementos eletrônicos como a Internet, as plataformas, o WhatsApp, a câmera e o celular. Em alguns casos é possível fazer isso. Em outros não. Em alguns casos é possível aplicar o divã. Em outros não. Em alguns casos é possível trabalhar com a pulsão escopofílica, é possível trabalhar com o olhar e com a voz através da câmera permitindo levar adiante um trabalho clínico que, de alguma forma, encaminhe o tratamento. Em outros não. E é isso que estou insistindo.” - comenta Daniel.
Segundo o professor, o trabalho de psicanálise online, a partir da câmera, estabelece um laço material entre o analisante e o paciente. Esse laço sustenta uma relação transferencial, assim como também a possibilidade de elaboração por parte do analisante, em um vínculo entre a pulsão escopofílica e a pulsão invocante, frisando novamente que isso se dá em alguns casos, e em outros não.
CONCLUSÃo
Podemos então ver, na história da psicanálise, como que em cada situação, em cada geografia, em cada cultura, em cada caso clínico, elementos foram utilizados para que ela se colocasse em prática. Esses elementos podem incluir o divã, mas também podem incluir outros mais distintos, outras questões e situações.
Em alguns casos é possível estabelecer um vínculo no qual a presença do corpo do analista se faça necessária para que o analisante sustente uma transferência até um certo ponto. Isso porque, quando o analisante passa para o divã, ocorre uma operação onde se subtrai do campo visual o corpo do analista e o que aparece em análise é a voz dele, ecoando, pontuando, marcando aquilo que o analisante faz.
“Então, o trabalho de tratamento clínico tem elementos que poderíamos chamar de teóricos.” – pontua Daniel afirmando que há um dispositivo teórico e um dispositivo clínico “que muda da primeira tópica para a segunda tópica, da psicanálise de Freud para a de Melanie Klein, para a psicanálise de Lacan, para a de Bion, e assim por diante.”.
Nesse ponto, o professor adverte que não é apenas o dispositivo analítico que muda de um autor para o outro, mas também mudam aqueles elementos que se mobilizam. Muda o setting, muda o conjunto de elementos que fazem parte da mobília, do lugar onde essa relação transferencial, esse lugar de enunciação, essa possibilidade de fala e de escuta e da elaboração dessa fala por parte do paciente se tornam possíveis.
“A psicanálise é possível de ser feita com o divã. E também é possível uma psicanálise para além do divã.” - Daniel Omar Perez
Gostaria de assistir o episódio completo de nosso podcast sobre o tema? Confira o vídeo abaixo:
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Transcrição e adaptação:
Gustavo Espeschit é psicanalista, professor e escritor. Pós-graduado em Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica pelo Instituto ESPE/UniFil e Pós-graduado em Clínica Psicanalítica Lacaniana pela mesma instituição. Formado em Letras Inglês/Português com pós-graduação em Filosofia e Metodologia do Ensino de Línguas.
Autor do episódio: Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.
Parabéns a todos os professores do ESPE , vocês estão promovendo uma verdadeira revolução na divulgação e promoção da psicanálise no Brasil. A qualidade do ensino é excelente!