Artigo Dois da série Psicanálise e Metapsicologia, baseado no percurso de mesmo nome já disponível na plataforma ESPEcast
O percurso “Metapsicologia e Clínica Psicanalítica”, ministrado por Tiago Ravanello dentro da plataforma ESPECast, tem como propósito oferecer uma introdução abrangente à teoria e à clínica, utilizando os textos fundamentais de Freud como base.
A intenção central é proporcionar uma leitura sólida dos conceitos fundamentais da teoria freudiana, adaptando-os e relacionando-os às discussões clínicas contemporâneas. Este enfoque representa um retorno ao essencial em Freud, buscando fornecer suporte substancial às experiências clínicas e aos desafios enfrentados pela nossa atualidade.
Em um post anterior, apresentamos a introdução à metapsicologia freudiana e sua descrição em termos dinâmicos, topográficos e econômicos. Neste artigo, vamos acompanhar o professor Ravanello em sua leitura pelo texto “O Recalque”, de 1915, que faz parte dos artigos metapsicológicos.
Boa leitura
Texto “Die Verdrangung” (1915)
Pode ser considerado inicial, um “abre alas” dos artigos metapsicológicos – sem ser necessariamente o primeiro – o texto sobre o recalque. Algumas traduções trazem o termo “Verdrangung” como “repressão”, outras como “recalque”. Neste texto, de 1915, Freud vai propor uma teoria da divisão do sujeito.
“A ideia de recalque o próprio Freud vai destacar - em 1909, em “Cinco Lições de Psicanálise”- como a pedra angular da teoria psicanalítica, ou seja, o ponto onde o raciocínio fez a curva para que a psicanálise pudesse ser constituída. Esse conceito fundamental de Freud é um conceito sobre a divisão do aparelho psíquico. Freud vai dizer que é através das experiências do recalque, da censura e da resistência que foi-lhe possível pensar um conceito de inconsciente. Porque do ponto de vista de uma análise, a gente poderia considerar como óbvio que todo analisando quer fazer com que seu inconsciente venha à tona. Todo analisando quer falar daquilo que é causa de seu sofrimento. Todo analisando gostaria, desejaria e se implicaria num movimento de cura.” – explica Ravanello.
Mas então por que há resistência? Por que há esquecimentos? Por que há defesas em relação àquilo que um analista visa saber ou escutar? Porque entre os sistemas há divisões. Divisões que são conflitos. Divisões que são, inclusive, de interesses.
Esses conflitos são psíquicos no sentido de que o sujeito não é um sujeito integrado, inteiro, holístico. Ele é um sujeito em sua divisão. Quando Freud pensa então o conceito de recalque ele vai pensa-lo não como um elemento da psicopatologia, ou seja, ele não pensa que os pacientes de neurose histérica são os que operam o recalque ou que este seria uma característica exclusiva sintomática de algum tipo de neurose. Freud pensa o recalque como fruto da divisão subjetiva.
Normalidade x Desejabilidade
Essa ideia vai implicar uma condição da teoria freudiana de não opor neurose à normalidade. “Não há, do ponto de vista da psicanálise, uma concepção de saúde que se oponha à concepção de doença. ” – pontua Ravanello – “Não há uma concepção de normalidade que se oponha a uma concepção de anormalidade. Não há uma concepção, por exemplo, de controle ou “desejabilidade” social que se oponha à liberdade individual, segurança, etc. O que nós temos do ponto de vista da teoria e da clínica freudiana? Sujeitos sobredeterminados pelo inconsciente, consciente e pré-consciente ligados à desejabilidade social, aos circuitos com o outro, porém em situações de conflito. Isso vai nos permitir um olhar completamente diferente sobre o sofrimento”
O que pauta a clínica psicanalítica e organiza os interesses do analista não é que os sujeitos cheguem a uma certa “desejabilidade”, ao funcionamento de uma certa norma ou a um certo modelo de sociedade. Isso difere a psicanálise em relação a outros modelos clínicos que vão definir, por exemplo, um rol de transtornos onde o que se quer é um sujeito que não apresente estas formas de sofrer.
Para a psicanálise, há algo da ordem do mal-estar que é próprio dessa divisão do sujeito. Ela acolhe e escuta isso. Ela propõe meios de transformação desse sofrimento, desse mal-estar, desses sintomas. Isso faz dela uma ética do desejo, uma ética do encontro trágico de si mesmo, de um enfrentamento trágico de si mesmo.
“Não à toa que Édipo acaba se tornando uma figura central na psicanálise. Édipo é aquele que fura os próprios olhos ao defrontar-se com a verdade mais trágica sobre si mesmo.” – diz Ravanello. Sobre o Mito de Édipo, visite o artigo correspondente aqui no blog.
Ravenello argumenta que quando falamos em “Complexo de Édipo” não estamos fazendo um retorno a um romance ou uma novela familiar, onde o menino ama tanto a mãe que acaba rivalizando com o pai. “Isso não é o complexo de Édipo. O que é o complexo de Édipo? É defrontar-se com a verdade que move nossa experiência desejante. É reencontrarmo-nos na fundação das nossas gramáticas do desejo. Ou seja, é um encontro ou um enfrentamento trágico de si mesmo. ” – explica.
Freud então acrescenta o recalque como um elemento constitutivo, estrutural do aparelho psíquico e não como um elemento patogênico ou externo, que se acrescenta a ele posteriormente, “como se fosse um vírus, como se fosse uma bactéria, como se fosse um corpo estranho.”, nas palavras de Ravanello.
Ao dizer que ele faz parte da estruturação dos aparelhos psíquicos, Freud faz, ao mesmo tempo, uma recusa de tratamentos morais. Ele vai dizer que não nos interessa reeducar pacientes, coloca-los novamente em seu lugar, em seu modelo, conforme nós os desejamos. Por esse motivo a psicanálise vai recusar a concepção de transtorno ou desorderm.
Disorder. No original inglês: aquilo que transtorna, que tira do torno, tira da forma. Elemento que se estranha em relação àquilo que normalmente ou naturalmente se teria ou seria. Essa concepção de natureza humana não existe em Freud. “ Para Freud, nós somos seres caóticos, desejantes, pulsionais, que encontramos meios de sobreviver no mundo. Ou, como diria Freud em “Mal-Estar na Civilização” – citando Frederico I – no meu reino, cada um se salva à sua maneira.”
A concepção de recalque então, do ponto de vista freudiano, vai nos permitir, entre outras coisas, avaliar os impactos das relações entre lei, “desejabilidade” social, modelos de saúde, modelos de normalidade. Em resumo, os impactos de tudo isso no sujeito. Neste ponto Freud vai reconhecer, por exemplo, uma moral sexual civilizada ligada diretamente a um modelo de sofrimento próprio de sua época.
“Freud vai começar ali a perceber como há impactos do campo da linguagem, impactos que são constituídos como narrativas nas nossas formas de organização do nosso mal-estar, do nosso sofrimento e dos nossos sintomas. Em função disso, Freud vai pensar que uma psicanálise teria que ser, então, um tratamento psíquico para problemas psíquicos.”
Assim, se faz presente a recusa de elementos da ordem da moral, do progresso e da organização social e a priorização de um movimento de escuta desse sofrimento - a partir dos processos econômicos- para lidar, então, com questões da ordem, da dinâmica e da topografia.
O que seria o recalque?
Freud propõe o recalque como uma etapa preliminar da condenação – algo entre a fuga e a condenação, pressupondo não há como fugir de nossos próprios desejos, não há como fugir das pulsões, como não há fuga para o que é interno, há uma dimensão de verdade do inconsciente que se impõe do ponto de vista da constituição psíquica. Na Interpretação dos Sonhos, ao dizer que o inconsciente é a verdadeira realidade do psiquismo, é sobre isso que Freud está falando.
Deste modo, a vivência, o enfrentamento disso leva a conflitos com nossos aspectos éticos, estéticos e morais, ou seja, com o nosso ego, com aquilo que capturamos do outro de uma forma dialética para nos reconhecermos a partir de um olhar social.
“Não há, em Freud, um ego que seja inato, que seja natural, que seja próprio à nossa condição humana. A nossa condição de eu é resultante das relações sociais. Isso é o caráter de constituição do eu no Complexo de Édipo. Processos de identificação, processos da movimentação do desejo, da dinâmica do desejo, que vão constituir uma referência ética, estética e moral para que eu possa, por exemplo, me avaliar, para que eu possa, por exemplo, me colocar no mundo, para que eu possa, por exemplo, pensar que esse sou eu nisso que eu penso, faço ou desejo.” – Ravanello.
Este âmbito de impossibilidade de resolução do conflito entre um desejo que pulsa num sentido e aspectos éticos, estéticos e morais que pulsam por outro, faz com que exista, para que a solução seja alcançada, o recalque, ou seja, o não querer saber de nada disso. A ideia de que existe algo que não pode ser pensado em nossa existência, não significa que este algo seja eliminado. Esta é a tese fundamental a respeito do inconsciente.
“Como diria um grande amigo escritor chamado Leonardo Brasiliense Jr.: “É aquilo que a gente coloca para baixo do tapete, lugar onde justamente tropeçamos.” - Ravanello
Não há perda, não há morte, não há esquecimento no inconsciente. Tudo retorna em forma de sintoma. A ideia do mecanismo do recalque é permitir um certo ajuste, uma certa adequação, uma organização das associações no sentido de esquecer, retirar da consciência e do pré-consciente, representações que colocariam o desejo em conflito, de forma que outras formas de associação inconscientes existam, assim como criar possibilidades de retorno desse recalcado, porém de forma desfigurada, metaforizada, mascarada, deformada. Assim sendo, essas representações não seriam colocadas novamente em conflito.
Isso não quer dizer que quando há recalque, há sintoma, pois, boa parte daquilo que consideramos ser o melhor de nossa personalidade tem conexão com elementos que são da ordem do recalque e do seu retorno. Que são da ordem das formações do inconsciente.
“Nós também nos identificamos em relação a isso. Ou seja, nós também nos moldamos por força das nossas forças repressivas, ou por nossas condições de recalque.”
Recalque primário e Secundário
Para finalizar, nesse texto sobre o recalque, Freud vai nos propor o conceito extremamente interessante, extremamente importante, que é o conceito de recalque primário, que se distinguiria do recalque propriamente dito, ou recalque secundário.
Explica Ravanello:
“Quando a gente fala de o recalque, geralmente a gente se refere a um recalque secundário ou recalque propriamente dito, que é esse movimento de retirar uma representação da consciência e dar outros destinos para a quantidade de afeto que estava ligada.”
Freud vai pensar que há um recalque primário, que é um movimento no aparelho psíquico de constituição de um núcleo do inconsciente. “Ou seja, esse inconsciente teria uma espécie de umbigo, de centro, de polo de atração das representações. A única questão que a gente precisa fazer a ressalva é que, para Freud, esse núcleo do inconsciente é vazio. Ele não é a condição de uma qualidade, por exemplo. Freud em momento algum vai dizer que o ser humano é bom por natureza, ou o ser humano é invejoso por natureza, ou que determinado tipo de afeto ou determinado tipo de questão nos seja originária. ” – explica Ravanello.
O recalque primário é um processo de ligação fundamental entre uma representação e uma quantidade de afeto, que institui um modo, ou seja, a partir do recalque primário é que nos tornamos seres de linguagem. Se existe então, para Freud, algo que se aproxime do instinto no humano, quer dizer, algo que nos é inescapável, seria o fato de nós não conseguirmos não sermos afetados pelo campo da linguagem.
“Nós trabalhamos com nomeações, formas de reconhecimento, organizações, associações que para nós não são inventadas. Nós não inventamos uma linguagem, nós não elaboramos um projeto pessoal de como nós vamos organizar, raciocinar, pensar, etc. Nós somos tomados pelo campo da linguagem, ela incide sobre nós. Isso é um elemento extremamente importante para o raciocínio ou a forma de compreensão do pensamento lacaniano, mas já está presente em Freud a partir desse conceito fundamental de recalque primário.” – conclui Ravanello.
Quer saber mais sobre os textos metapsicológicos de Freud? Acesse então a plataforma ESPECast e confira este e os outros episódios do percurso com o Professor Tiago Ravanello, além de outros percursos, com grandes nomes da psicanálise, em mais 300 horas de conteúdo.
Até nosso próximo texto
Transcrição e adaptação:
Gustavo Espeschit é psicanalista, professor e escritor. Pós-graduado em Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica pelo Instituto ESPE/UniFil e Pós-graduado em Clínica Psicanalítica Lacaniana pela mesma instituição. Formado em Letras Inglês/Português com pós-graduação em Filosofia e Metodologia do Ensino de Línguas.
Autoras do episódio:
Tiago Ravanello: Psicanalista, doutor e mestre em Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pós-Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Parte de seu doutorado sido realizada como bolsista do Centre de Sciences du Langage da Université de Paris. Éprofessor Associado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - Faculdade de Ciências Humanas, atuando no curso de Graduação e Pós-Graduação em Psicologia - Mestrado.
Comments