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OS TEXTOS DE FREUD


“Trata-se de pensar a obra de Freud não como se fosse uma coleção de trabalhos individuais, mas justamente como etapas na construção de um pensamento.” - Richard Simanke A ideia dessa série é construir uma apresentação do esquema da obra freudiana. Todo mundo conhece as obras de Freud, as principais. As menos famosas, talvez não, mas todo mundo já conhece “A Interpretação dos Sonhos”, quem se interessa pela psicanálise conhece “Os Três Ensaios de Uma Teoria da Sexualidade”, conhece “O Eu e o Isso” ou as obras culturais como “O Mal-Estar Na Cultura” e assim por diante. Mas, normalmente, quando você aborda a obra freudiana a partir dessas obras isoladas, o que se perde de vista é, na verdade, a estrutura da obra, de certa maneira a lógica da construção da obra, porque o que temos na obra de Freud é a construção de um pensamento, e esse pensamento tem um argumento, tem uma lógica, tem uma sequência de ideias que se articulam de uma maneira que pode ser explicitada e compreendida.

O objetivo dessa série de encontros, então, não é falar das obras individualmente, mas falar de como elas se colocam, de como elas se situam numa estrutura de pensamento que é justamente o eixo teórico e conceitual, do pensamento de Freud.

“Então, trata-se de pensar a obra de Freud não como se fosse uma coleção de trabalhos individuais, mas justamente como etapas na construção de um pensamento.” – nos diz o Professor Simanke. - “É claro que isso é uma reconstrução, é claro que Freud não concebeu as suas obras dessa maneira, ele, como todo mundo, foi produzindo essa obra à medida que as circunstâncias da vida, do trabalho, do problema de pesquisa, da clínica, foram se colocando para ele.” – acrescenta.

Mas como de fato isso resulta na construção de um pensamento, ou seja, numa articulação de conceitos que é inteligível em si mesmo? – nos pergunta Simanke, nos convidando a reconstruir essa estrutura. Isso permitiria construir um esquema no qual o leitor poderia situar as obras individuais de Freud e pensar a evolução do seu pensamento, desde os seus primórdios até a sua etapa final, não simplesmente como um conjunto disperso de trabalhos, mas como trabalhos que se relacionam uns com os outros de tal maneira a dar forma ao pensamento freudiano.

O que o Professor Simanke nos propõe nesse percurso?


  1. Identificar quais são esses problemas;

  2. Identificar em que etapa da obra de Freud e em quais trabalhos esse problema é abordado;

  3. Verificar que, na medida em que esse problema recebe uma solução, ela mesma produz novos problemas que vão, por si só, movimentar o pensamento freudiano em seu momento seguinte.

“Embora isso seja uma reconstrução a posteriori, claro, do pensamento de Freud, eu espero que seja útil para tornar mais inteligível esse movimento, esse processo de construção da teoria freudiana ao longo do tempo.” – nos diz Simake.


 
O início

Para começar. 

O primeiro passo da construção da psicanálise por Freud, e consequentemente de seu pensamento psicanalítico, é aquele da transição inicial, quando Freud deixa de ser um neuropatologista, ou seja, um médico envolvido com a pesquisa sobre as doenças do sistema nervoso que podem ser tratadas dessa forma. Quando Freud deixa o seu projeto científico inicial de ser um neurocientista, de fazer pesquisa neuro anatômica, neurofisiológica, e se volta para a clínica das doenças nervosas, ele está se colocando ali como um neuropatologista. “Esse é o passo inicial e vai ser esse trabalho de Freud como neuropatologista que vai conduzí-lo em direção à criação da psicanálise como movimento, como uma exigência interna, justamente dessa nova posição que Freud assume em sua carreira científica.” – ressalta Simake.

Ressaltemos que quando Freud se engaja na neuropatologia, ali no contexto das duas últimas décadas do século XIX, ele não está abandonando o seu projeto, seu ideal de ser um cientista. A neuropatologia, no século XIX, não era apenas uma disciplina aplicada, voltada para a pesquisa, a explicação e o tratamento das doenças nervosas. Ela era o estudo das doenças do sistema nervoso, era uma forma de fazer pesquisas neurocientíficas, pela simples razão de que você não tinha muitos outros instrumentos à sua disposição, ou seja, não tinha como pesquisar o funcionamento do sistema nervoso de muitas outras maneiras.

Se podia fazer pesquisa neuro anatômica, como Freud já havia feito, ou seja, era possível pesquisar a estrutura dos tecidos nervosos, procurar inferir as funções das diversas partes do sistema nervoso, a partir dessa análise da sua estrutura, mas, por outro lado, não havia muitas maneiras de se estudar o sistema nervoso em funcionamento, que dizer, de se estudar a função nervosa diretamente. Esta acabava tendo que ser estudada indiretamente, e uma das maneiras de se fazer isso era a partir das suas modificações patológicas. Quando uma lesão, um processo patológico com origens inatas ou constitucionais, produz efeitos que podem ser detectados no comportamento de uma pessoa - na fala, no pensamento, nas funções mentais como um todo - estes podiam ser, retrospectivamente, remetidos à disfunções em certas áreas cerebrais, que podiam, por contraste, se inferir qual seria aquela função daquelas estruturas nervosas, cerebrais, se não tivesse havido aquela modificação patológica.

“Neuropatologia era um aspecto da clínica médica, da clínica das doenças nervosas, mas também era uma maneira de se fazer pesquisa médica, de se fazer pesquisa neurocientífica, e é nisso que Freud está engajado.” – nos conta Professor Simanke.

Quando Freud então abandona o Instituto de Fisiologia da Universidade de Viena e vai para o Hospital Geral de Viena, fazer o que hoje chamaríamos de residência médica, ele não está abandonando sua carreira científica, ele está somente mudando de estratégia. Neste contexto ele vai se encontrar, vai realizar sua famosa viagem a Paris e tomar contato com o grande centro de pesquisa neuropatológica da Europa naquele período, o Hospital Salpetrière, um hospital de mulheres indigentes onde a figura do médico Jean-Martin Charcot imperava como grande figura da neuropatologia, da neurologia da época naquele momento. 

“Na verdade, Charcot foi um dos principais responsáveis para que o termo neurologia, que já existia, passasse a ser aceito como uma especialidade médica.” – aponta Professor Simanke. - “O termo já existia, mas não era muito utilizado, mas Charcot fundou uma revista chamada Arquivos de Neurologia e, a partir disso, fez com que o termo se tornasse mais disseminado.” – conclui.

Portanto, do seu encontro com a assim chamada Escola de Salpetrière, Freud elege um problema neuropatológico fundamental para a sua pesquisa, ao qual ele vai se dedicar a partir daí: a questão da histeria.


A Histeria

A histeria era – ou era considerada – uma doença nervosa, embora houvesse um debate a respeito de se ela era uma doença nervosa real ou se era simplesmente um conjunto de fenômenos erroneamente diagnosticados como uma doença do sistema nervoso.

Em Salpetrière, Freud encontra então uma escola que aposta na realidade da neurose histérica – neurose entendida no seu sentido original, ou seja, o termo ainda designava uma doença do sistema nervoso e não um transtorno psicológico como é entendido hoje em dia, muito por causa da influência exercida pela psicanálise. – e faz dela o objeto central de sua pesquisa e de seu trabalho clínico quando retorna de Paris para Viena e dá início à sua prática como médico especialista em doenças do sistema nervoso. 

Curiosidade que nos conta Simanke. “Alguns historiadores comentam que a histeria é a neurose que permitiu que a neurologia se afirmasse como especialidade médica, porque era uma das poucas coisas que os médicos podiam tentar tratar e curar considerando que a maior parte das doenças nervosas eram incuráveis e o médico não tinha muito a fazer a não ser diagnosticar e mandar o paciente morrer em casa. A histeria, por sua vez, era uma neurose que podia ser tratada – ou pelo menos os médicos podiam tentar tratar e reivindicar, em alguns casos, algum grau de sucesso terapêutico. É isso que Freud então vai fazer.”  


O X da questão

“Agora, qual é o movimento, qual é o X da questão nesse passo inicial de Freud que vai levar da neuropatologia à psicanálise?” 


O X da questão é Freud empenhado em construir uma teoria da histeria e, no sentido mais amplo, uma teoria das neuroses, ainda entendidas como transtornos neuropatológicos, na qual ele vai procurar diminuir ao máximo o papel reservado aos fatores inatos, aos fatores constitucionais e aos fatores hereditários, e aumentar, na explicação dos fenômenos que constituem esses quadros clínicos, o papel dos fatores adquiridos, dos fatores acidentais, daquilo que ocorre na vida do indivíduo, e não daquilo que ele traz do seu passado, da sua ancestralidade, como uma herança, como tendências hereditárias. 


Frisemos os dois tipos de transtornos neuropatológicos citados por Simanke em sua argumentação. Existem transtornos neuropatológicos que são causados por algum tipo de acidente. A saber, a pessoa sofre uma lesão - um traumatismo craniano, ou uma lesão no cérebro, uma intoxicação com alguma substancia que leva à morte as células cerebrais, para citar alguns exemplos – e dessa lesão se original então os sintomas. Existem também neuroses – no sentido de doenças nervosas vale frisar novamente – nas quais este trauma, essa lesão, não existe. A principal delas, nos aponta o professor, e a mais estudada era a epilepsia: uma doença, um transtorno funcional do sistema nervoso, onde não há lesão. O cérebro de um epiléptico está lá, mais ou menos igual ao cérebro de uma pessoa não epiléptica, mas, de tempos em tempos, acontece um episódio que leva a um desarranjo da função nervosa que conduz a crises convulsiva, que é o sistema mais chamativo, mais agudo e mais conhecido do transtorno epiléptico. 


Na epilepsia, portanto, não há lesão. Ela é um transtorno funcional do sistema nervoso. Portanto, ela só pode ter uma causa hereditária, já que não tem uma causa acidental, não tem uma causa na história do indivíduo. O sujeito tem que ter nascido com o seu sistema nervoso constituído de tal maneira a leva-lo a apresentar este tipo de transtorno.


Na histeria se dava o mesmo. A histeria era um transtorno funcional do sistema nervoso. Não há lesão cerebral na histeria, não há transtorno químico mecânico que possa responder, por sua vez, pela origem dos sintomas. Ela tinha então que ser considerada como algo devido a um fator hereditário, a um fator constitucional: o sujeito nasce com uma certa predisposição a ela, que podia ser desencadeada pelos acidentes da vida, mas a causa fundamental, a etiologia – no sentido médico da palavra, como estudo das causas das doenças – era constitucional. 


Já havia alguns estudos, inclusive na própria Salpetrière, que procuravam identificar o papel dos fatores acidentais adquiridos na causalidade das neuroses. Charcot, por exemplo, considerava que a histeria masculina tinha uma origem traumática. Segundo ele, ela não seria devida a um fator constitucional, ou, pelo menos o fator adquirido teria mais peso. Um acidente, um episódio aterrorizante, uma quase morte, alguma coisa assim na história de vida do indivíduo acabaria causando um trauma – não no sentido mecânico da palavra, como um choque que causa uma lesão, mas no sentido psicológico, no sentido de uma experiência afetivamente carregada, excessivamente intensa, que não pode ser metabolizada pelo psiquismo do indivíduo – que vai produzir, a partir de sua ocorrência, efeitos patológicos. 


Entre esses efeitos estariam os sintomas histéricos.

Gostaria de assistir a live completa sobre a introdução do percurso " Os textos de Freud"? Confira o vídeo abaixo:





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Transcrição e adaptação:

Gustavo Espeschit é psicanalista, professor e escritor. Pós-graduado em Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica pelo Instituto ESPE/UniFil e Pós-graduado em Clínica Psicanalítica Lacaniana pela mesma instituição. Formado em Letras Inglês/Português com pós-graduação em Filosofia e Metodologia do Ensino de Línguas.


Autor do episódio: Richard Simanke é pesquisador e autor de diversos trabalhos e livros renomados. Doutor em Filosofia pela USP (1997). Mestre em Filosofia e Metodologia das Ciências pela Universidade Federal de São Carlos (1992), Coordenador do Projeto PROCAD Psicanálise, linguagem e cognição (UFSCar/PUCPR/UFES) no período 2009-2014. Professor da Universidade Federal de São Carlos entre 1994 e 2012.

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