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OS TEXTOS DE FREUD 2


“Trata-se de pensar a obra de Freud não como se fosse uma coleção de trabalhos individuais, mas justamente como etapas na construção de um pensamento.” - Richard Simanke No post “Os Textos de Freud” , o professor Richard Simanke nos apresentou uma introdução a obra freudiana, passando pela construção de seu pensamento no início da psicanálise.

A seguir vamos apresentar o que ele nos diz sobre a obra de Freud “Estudos sobre a Histeria”, escrita em parceria com Joseph Breuer.

Esta argumentação faz parte do percurso “Os Textos de Freud”, conduzido pelo professor Richard Simanke e disponível na plataforma ESPECast para assinantes.

 

Estudos sobre a Histeria

Freud retorna de Paris para a Viena, e passa a trabalhar com Josef Breuer, um médico colega, que havia lhe falado do primeiro caso de histeria que tinha tratado meio ao acaso, meio por acidente, com um método hipnótico. Na obra “Os Estudos sobre a Histeria”, uma coleção de casos clínicos que ilustra as hipóteses conjuntas dos dois sobre a histeria, que eles escreveram conjuntamente e publicaram em 1895, este caso aparece como o caso da Anna O. 


O que Breuer e Freud estão tentando fazer?  De certa maneira eles estão tentando generalizar o modelo da histeria traumática para a totalidade dos casos de histeria. Ao contrário da escola de Charcot, que reconhecia que algumas formas excepcionais de histeria podiam ter uma etiologia traumática, o que eles fazem é construir uma teoria que mostra que toda histeria, em última instância, tem uma origem traumática e, portanto, seria possível dar uma explicação para ela não em termos de fatores constitucionais, mas em termos de fatores adquiridos. Fatores estes que, justamente, vão impulsionar a explicação da neurose em direção aos fatores psicológicos, já que aquilo que foi adquirido na história do indivíduo permanece no seu psiquismo como memória, essa função que preserva a nossa experiência passada no nosso presente, na nossa experiência atual. 


“Daí a famosa frase do Breuer lá no primeiro capítulo dos “Estudos sobre a Histeria”, que os histéricos sofrem, em última instância, de reminiscências. Ou seja, que a histeria, em última instância, é uma forma patológica de lembrar. Um trauma que não pode ser resgatado, relembrado, enquanto tal, produz, por outras vias, os sintomas que constituem a neurose histérica.” – aponta Simanke.


Ao adotarem essa estratégia, Freud e Breuer estão enfatizando e dando mais espaço aos fatores adquiridos e diminuindo o espaço reservado aos fatores constitucionais. Esse é o passo fundamental que vai permitir que a psicanálise surja como uma teoria psicológica dos transtornos neuróticos, e não apenas como uma teoria médica, ou uma teoria que coloque em primeiro plano fatores anatômicos ou fatores fisiológicos.


“O sintoma vai ser uma representação do trauma na condição patológica do paciente. O sintoma vai ser uma espécie de retorno do trauma. O sintoma vai ser uma espécie de repetição do trauma, mas que não pode ser reconhecida como tal. E, por isso, o sintoma permanece enigmático, incompreensível para o paciente e para o médico, a princípio.”

Forma de investigação

Com isso, também, o tratamento da neurose começa a assumir um caráter investigativo, começa a ser uma espécie de “trabalho detetivesco” – como o chama Simanke – onde o médico vai interagir com o paciente, vai falar com ele, vai ouví-lo e assim vai procurar encontrar as pistas que permitem identificar o episódio traumático e seus desdobramentos e como estes atuaram na formação dos sintomas. 

É essa forma de investigação que se faz presente nas páginas desta obra conjunta de Freud e Breuer chamada Estudos sobre a Histeria que, muito justificadamente, é considerada como um dos marcos da fundação da psicanálise – embora Freud só comece a utilizar este termo no ano seguinte de sua publicação, inicialmente somente para se referir a seu método de tratamento e depois para designar toda a teoria que justifica esse método.

Aos poucos o termo então vai assumir a significação completa como uma teoria psicológica de alcance geral. Qual é o interesse? O interesse é expandir o papel dos fatores adquiridos e diminuir, ao máximo, o papel dos fatores constitucionais. É um objetivo prático e teórico. É simultaneamente terapêutico e explicativo. 

Terapêutico por quê? Porque uma condição patológica que decorre de uma constituição herdada não pode ser tratada. “Você não pode mudar a constituição do sujeito. Ele nasceu daquele jeito e vai continuar daquele jeito.” – explica Simanke. Ao ponto que se algo foi adquirido como um acidente em seu percurso de vida, passa a existir uma perspectiva de que isso possa ser tratado e que algum grau de sucesso terapêutico possa ser alcançado com a forma correta de intervenção. 

Tem um interesse teórico por quê? Porque se a neurose é causada por um acontecimento da vida do indivíduo, esse acontecimento pode ser descoberto, pode ser conhecido através de uma pesquisa clínica, de um método clínico.

“Se o fator etiológico, o fator causal da neurose é um fator constitucional, está escrito na realidade, na materialidade do sistema nervoso, se você for descobrir isso, tem que fazer uma pesquisa neurofisiológica, neuro anatômica, uma pesquisa de laboratório. Você não descobre isso fazendo pesquisa clínica. Mas se esse fator é um episódio que pode ser rememorado, que pode ser trazido ao contexto do tratamento e trabalhado ali de maneira que possa ser compreendido, possa ser tornado inteligível. A maneira como esses episódios, seu desdobramento, suas articulações atuaram na formação da neurose, então o método clínico pode fazer isso. Você pode explicar a neurose não fazendo pesquisa no laboratório, não fazendo exames neuro anatômicos, não fazendo pesquisa neurofisiológica, mas você pode fazer a pesquisa necessária para a explicação do sintoma na própria situação de tratamento, na própria situação clínica.” – diz o professor.

Assim, Freud reencontra a tradição da clínica médica na qual a clínica – o trato do médico com o paciente, com o doente – é um espaço de intervenção e, simultaneamente, de investigação onde o médico pode coletar as informações necessárias para construir uma explicação, para construir uma teoria que torne inteligíveis os fenômenos mórbidos.

De fato, o que a gente vai encontrar ali nessa origem, quase no limiar do surgimento da psicanálise propriamente dito, é essa ideia de que explicar o sintoma e tratá-lo são a mesma coisa. Descobrir o sentido do sintoma, fazer com que o paciente o compreenda, fazer com que o sintoma seja reinserido no contexto de sua atividade mental ordinária em vez de ficar encapsulado numa parte do seu psiquismo a qual ele não tem acesso. Isso tem um efeito terapêutico. Assim sendo, explicar a neurose e tratar dela passa a ser uma única coisa, só que a condição pra isso é justamente redescrever a neurose, construir uma teoria, encontrar evidências que expliquem a neurose – a histeria no caso, mas que depois se expandiu para a neurose obsessiva, para certas psicoses como a paranoia e a psicoses alucinatórias – em termos de fatores adquiridos, o que abre espaço para os fatores psicológicos, para as ideias, as representações, os afetos na origem dos transtornos psicopatológicos. 

O fator constitucional, é claro, nunca vai desaparecer completamente. “Mesmo nesse momento, e como a gente vai falar futuramente, quando Freud chega a levar ao máximo, ao mais longe possível essa amplitude concedida aos fatores adquiridos e, portanto, também aos fatores psicológicos, o elemento constitucional nunca vai desaparecer, ainda que, hipoteticamente, sempre vai permanecer a ideia de que uma condição herdada, uma condição constitucional é necessária para a ocorrência da neurose. Mas o fato de que essa condição permaneça necessária não significa mais que ela seja suficiente. Ou seja, essa condição tem que estar presente, mas alguma outra coisa tem que ocorrer na vida do paciente para que o fenômeno neurótico emerge.” – conclui Simanke.

Explicar a neurose e tratar a neurose passa a ser uma única e mesma coisa.

Esse é o passo inaugural de Freud.

O rompimento Freud e Breuer

Freud vai discordar e romper com Breuer por várias razões, algumas pessoais até.Do ponto de vista estritamente científico e teórico, o rompimento se dá porque Breuer defendia uma hipótese que ainda concedia o que Freud julgava ser um espaço demasiado aos fatores constitucionais. Generalizar o modelo charcotiano da histeria traumática para a totalidade dos casos de histeria pode ser problemático porque nem todos os pacientes que padecem dessa neurose podem apresentar, em sua história de vida, acontecimentos que tenham o caráter de trauma.


Explicando: se a pessoa sofreu um grande acidente ferroviário, por exemplo. Se sofreu um acidente onde uma carroça virou e quase a matou ou se esteve numa guerra. Nestes casos você tem, na história de vida desses pacientes, acontecimentos que são claramente traumáticos e não há problema em considerá-los como tal. “É perfeitamente inteligível que aqueles acontecimentos tenham provocado efeitos disruptivos no funcionamento mental daquela pessoa.”  - comenta Simanke.


Porém, na maior parte dos pacientes histéricos, somente coisas corriqueiras haviam se dado, acontecimentos comuns, que se dão na vida de todo mundo - e nem todo mundo fica neurótico ou desenvolve algum tipo de transtorno psicopatológico por causa deles. O que traz de volta a questão da generalização. se você quer generalizar o modelo traumático para a explicação da histeria, para a totalidade dos casos de histeria, é necessário dar conta de por que coisas que não seriam normalmente consideradas como traumas na vida daqueles pacientes, atuaram como tal, ou seja, tiveram efeitos traumáticos.



A Hipótese dos Estados Hipnoides de Breuer e o caso Anna O. 

Breuer, então, elabora a famosa hipótese dos estados hipnoides, acreditando que, se existem duas condições funcionais básicas do sistema nervoso – a vigília e o sono – deveria haver um terceiro estado intermediário, uma terceira condição que seria um meio caminho entre a vigília e o sono. A esse terceiro estado ele vai chamar “estado hipnoide”: um estado semelhante ao sono, mas que não é o sono propriamente dito.  


Assim ele considera, procura argumentar e trazer evidências que comprovem que pessoas que apresentem alguma propensão a se encontrarem, de tempos em tempos, nesse tipo de estado estariam sujeitas a desenvolver uma histeria. “Por quê? Porque a pessoa está desperta, está interagindo com o mundo, mas não é capaz de reagir adequadamente àqueles acontecimentos. Então algo que produza muito afeto, um afeto intenso, quando ocorre nesses estados hipnoides, praquela pessoa vai funcionar como um trauma. Porque o trauma é exatamente isso:  resulta da incapacidade do sujeito de lidar com a intensidade de afeto mobilizada por um certo acontecimento.” – explica Simanke.


Qualquer pessoa pode ficar traumatizada se um acontecimento é muito aterrorizante. Acontece que para uma pessoa com essa tendência a estar, de tempos em tempos, nesse estado hipnoide, um acontecimento poderia mobilizar uma certa intensidade de afeto no momento em que ela se encontrasse nesse estado caótico e ela seria incapaz de reagir adequadamente a ele. Isso permaneceria, então, atuando em seu psiquismo como um trauma, isolado do fluxo normal da consciência e produzindo os seus efeitos sintomáticos. 


Essa hipótese se baseia no caso Bertha Pappenhein, a Anna O. 


Anna apresentava devaneios, se colocava em uma espécie de estado auto-hipnótico de tempos em tempos e ficava fora de si quando estava nele. Assim, ela percebeu que se lembrava de acontecimentos dos quais não tinha memória quando em seu estado normal de consciência e que essas lembranças se relacionavam  à origem dos seus sintomas. 


Breuer, então, ao invés de esperar que estes episódios acontecessem espontaneamente, passou a hipnotizar Anna com o objetivo de tentar fazer emergir, durante o estado hipnótico, e verbalizar aquelas lembranças que poderiam, então, explicar os sintomas apresentados, experimentando e extravasando aquela afetividade retida quando do acontecimento da cena. Isso levava a um alívio de tais sintomas.


Uma vez, por exemplo, ela estava cuidando do seu pai doente, que estava para falecer, e foi pedir ajuda a uma governanta que morava em um quarto do sótão. Ela estava exausta, porém não estava em seu estado hipnótico. Ao entrar no quarto da governanta, ela não a encontra. Porém, vê um cachorro bebendo água do copo que ela conservava em cima de seu criado-mudo. Ocorre-lhe, assim, a ideia de que a governanta voltaria ao seu quarto e beberia água deste mesmo copo. Tal ideia lhe provoca um asco incontrolável, mas ela se contém, porque realmente precisava da ajuda da governanta para resolver a crise na qual seu pai doente se encontrava naquele momento.


Este episódio desaparece de sua memória, mas ela, porém, desenvolve um sintoma: uma hidrofobia histérica. Ela não consegue mais beber água. Passou semanas tendo que comer frutas para se hidratar pois estava absolutamente incapaz de beber água.


Quando Breuer, através do seu método, finalmente resgata este episódio de sua memória, ela então pode extravasar todo aquele asco que sentiu no momento em que viu a cena do cachorro bebendo a água do copo e, consequentemente, sua hidrofobia se alivia e ela se torna capaz, novamente, de beber água.


“Quer dizer, claro, por mais que você possa achar nojento um cachorro bebendo água no mesmo copo que uma pessoa vai beber, isso não é um trauma para uma pessoa normal. Ninguém vai ficar doente por causa disso. Mas, se a pessoa está em um estado alterado de consciência, onde aquele afeto se manifesta de maneira desmedida e ao mesmo tempo ela não é capaz de processá-lo adequadamente, então para aquela pessoa, naquelas circunstâncias, isso pode funcionar como um trauma.”


Essa é a estratégia que o Breuer utilizava para generalizar aquele modelo explicativo charcotiano da histeria traumática.



A discordância de Freud e a teoria da defesa.

Freud discorda disso. Por quê? Porque essa tendência dos pacientes suscetíveis à histeria de manifestar esses estados hipnoides, para ele era uma característica hereditária, ou seja, uma característica constitucional. Ou seja, da perspectiva freudiana essa hipótese colocava demasiado peso no elemento constitucional.


Ao mesmo tempo, Freud estava tentando desenvolver uma outra hipótese: a sua teoria de defesa.

A possibilidade de algumas ideias - alguns conteúdos mentais - serem tão conflitivas, provocarem uma angústia tão grande, causaria um movimento espontâneo da mente para excluí-las da consciência. A isso Freud deu o nome de defesa, já que a pessoa se defende da lembrança desses acontecimentos.  Para Freud, esse mecanismo deveria ser suficiente para explicar a origem dos sintomas sem ter que recorrer a uma hipótese constitucional específica. 


Neste momento, Freud não tinha muito claro como ele podia dar um sentido para essa teoria, para isso que ele, já nessa época, começava a chamar de repressão, termo que depois vai adquirir uma dimensão muito maior dentro da teoria freudiana. “Quando os Estudos sobre a Histeria” vieram à luz, Freud não tinha uma teoria muito clara do que era a defesa neurótica,  do que diferencia a defesa neurótica simplesmente do esforço que todo mundo faz para não pensar em coisas desagradáveis. Quando o Breuer critica a hipótese da defesa do Freud, nas próprias partes dos Estudos sobre a Histeria que ele escreveu, ele diz exatamente isso: Eu não entendo como um esforço para não pensar em coisas desagradáveis pode produzir efeitos tão dramáticos como os efeitos com as manifestações sintomáticas da histeria. Ou seja, enquanto que o Freud, nas partes que ele escreve, vai reagir dizendo que nunca viu uma histeria hipnoide.” – comenta Simanke acrescentando que  “Estudos sobre a Histeria” é uma obra divertida porque é uma obra que apresenta duas teorias da histeria que não convivem bem uma com a outra no contexto da mesma obra, já que a mesma é escrita a quatro mãos.


A teoria da defesa é, justamente a direção que vai tomar esse esforço freudiano de, factualmente, ampliar o espaço concedido aos fatores adquiridos e aos fatores psicológicos na etiologia das neuroses, de maneira que o recurso a esses fatores seja suficiente, e que o elemento constitucional seja, de fato, empurrado com o segundo plano.


“O nosso próximo passo para tentar entender esse movimento é tentar entender exatamente qual é a resposta de Freud à espécie de desafio que o próprio Breuer coloca para ele nas páginas do Estudo sobre a Histeria. Ou seja, como a defesa - a repressão -  pode ser suficiente para causar um sintoma histérico. E é essa questão que Freud vai procurar dar resposta na continuidade.” – conclui Simanke.


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Transcrição e adaptação:

Gustavo Espeschit é psicanalista, professor e escritor. Pós-graduado em Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica pelo Instituto ESPE/UniFil e Pós-graduado em Clínica Psicanalítica Lacaniana pela mesma instituição. Formado em Letras Inglês/Português com pós-graduação em Filosofia e Metodologia do Ensino de Línguas.


Autor do episódio: Richard Simanke é pesquisador e autor de diversos trabalhos e livros renomados. Doutor em Filosofia pela USP (1997). Mestre em Filosofia e Metodologia das Ciências pela Universidade Federal de São Carlos (1992), Coordenador do Projeto PROCAD Psicanálise, linguagem e cognição (UFSCar/PUCPR/UFES) no período 2009-2014. Professor da Universidade Federal de São Carlos entre 1994 e 2012.

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