Rivalidade entre irmãos
- ESPEcast
- 4 de abr.
- 7 min de leitura
A fraternidade é uma relação de amor? É uma relação de amor e de ódio? É uma relação de rivalidade?
Estes são os questionamentos do professor Daniel Omar Perez no episódio 133 do ESPECast, disponível no canal do YouTube e no Spotify. Neste post, acompanharemos alguns dos principais pontos abordados por ele.
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Boa leitura!
“Os irmãos sejam unidos, pois esta é a lei primeira.”
Rivalidade entre irmãos é um tema cotidiano, assim como a relação amorosa entre eles. Podemos conceber também a ideia de um mundo fraterno, assim como propõe algumas religiões. Alguns modos de fazer política se colocam como grandes fraternidades.
“Os irmãos sejam unidos porque esta é a lei primeira. Tenham união verdadeira em qualquer tempo e a qualquer hora, porque se lutam entre si, os devoram os de fora.”. Assim diz o poeta argentino do século XIX José Hernandez em seu poema “O Gaúcho Martin Fierro.”
Comenta professor Daniel:
“É interessante porque a fraternidade se compõe a partir de laços entre o outro semelhante, mas, ao mesmo tempo, de uma exclusão com o outro. Quando propomos uma fraternidade, estamos, ao mesmo tempo, propondo que há alguém que está do lado de fora, que não é o irmão, que é o outro, que não é o semelhante, que é o invasor, o agressor, o adversário. ”
Em psicanálise, geralmente se fala da relação entre a criança e o pai, e os problemas seriam advindos de uma relação conturbada entre as partes. Algumas teorias psicanalíticas colocam o foco na relação da criança com a mãe e questão seria verificar como é que foi vivida e, depois, elaborada, essa relação com a mãe.
Há, portanto, uma vulgata, ou seja, uma ideia amplamente difundida, de que as questões com as quais a psicanálise trata se referem a problemas que um pode ter com relação ao pai ou a mãe. Estes problemas geram traumas e estes traumas, por sua vez, se transformam em fenômenos de repetição que, consequentemente, fazem o sujeito levar uma vida de sofrimento, de dor, de mal-estar. Isso é o que se afirma quando se trabalha focando o complexo de Édipo.
Leon Rozitchner
Daniel nos remete então ao psicanalista argentino Leon Rozitchner e ao seu livro “Escritos psicanalíticos: Matar o pai, matar o filho, matar a mãe.”
“O título do livro nos propõe que, de alguma forma, todos terminam mortos.” comenta professor Daniel lendo, em seguida, um trecho onde Rozitchner escreve sobre o que seria o trauma na história. Na leitura do professor Daniel ele diz: “Acredito que o complexo de Édipo que Freud colocava deve ser mantido para uma cultura patriarcal.”
O Complexo de Édipo, segundo Rozitchner então, seria um instrumento importante para o desenvolvimento de uma análise, no caso de uma cultura patriarcal. “É interessante porque não é o Complexo de Édipo que instaura a cultura patriarcal, é a cultura patriarcal que, de algum modo, estabelece uma relação entre pais e filhos ou filhas, mães e filhos ou filhas, que se elabora a partir do Complexo de Édipo.”
Segue Daniel com a leitura do texto.
“ Porém, devo compreender melhor esse recurso que Freud faz com relação ao trauma. Há dois traumas: o originário dos irmãos da horda e o infantil do Complexo de Édipo. - diz Rozitchner - Esse texto me faz pensar bastante porque há um trauma infantil, que é o Complexo de Édipo, que é a relação com o pai, mas ele diz que há um anterior, que é originário. Quer dizer, a relação com o pai é uma relação fundamental, mas há um trauma que é originário, que é a relação com os irmãos da horda.” – pondera o professor
Totem e Tabu
Em 1912, Freud escreve um texto que se chama Totem e Tabu, onde ele apresenta uma horda de crias, protegidas e alimentadas por um pai. Este pai, ao mesmo tempo que protege e alimenta, proíbe a cópula com as fêmeas dessa horda. Protege, mas ao mesmo tempo proíbe.
Este movimento, de proibição e de proteção, instaura o retorno da lei do pai morto. Os irmãos da horda – a fraternidade – por ódio ao pai, o mata, mas por amor a esse mesmo pai faz com que sua lei retorne na forma da lei do incesto. Segundo Freud, essa é a primeira lei, a que vai ordenar todo o conjunto legal de uma cultura.
Voltando a Rozitchner. Em seu ponto de vista o problema então não se constitui apenas por matar o pai, mas sim, primeiramente, pela relação originária entre os irmãos da horda na constituição da fraternidade.
Psicologia das Massas e Análise do Eu
A constituição da fraternidade em relação com o pai também é trabalhada por Freud no texto Psicologia das Massas e Análise do Eu. Nele Freud mostra como ela se estabelece por vínculo libidinal, ou seja, relações amorosas, mas também, ao mesmo tempo, por elementos de rivalidade e de competição. Se trata de saber quem é o irmão mais querido pelo pai, quem é o melhor filho, a melhor filha, quem é aquele que é privilegiado.
Assim se constroi a rivalidade dentro da fraternidade.
A fraternidade exclui aquele que não faz parte, o outro invasor, e, ao mesmo tempo, no seu interior, estabelece uma rivalidade para saber que é o melhor filho.
“Quer dizer, dentro de uma torcida de futebol, podemos pensar na pessoa que mostra que é o melhor torcedor. Dentro de um grupo político, poderíamos pensar na pessoa que tenta se destacar como o melhor membro desse grupo, aquele que mais segue, que mais faz e isso obteria um ganho em relação com a figura paterna. Então, isso também estabeleceria algum tipo de rivalidade.” – exemplifica Daniel.
Neste texto Freud diz que pessoas que lutam por justiça social, por modos igualitários de tratamento perante a justiça, na verdade, por saberem que não são o filho privilegiado, não querem também que o outro seja. Se eu não sou, ninguém vai ser. Por isso é melhor que haja justiça social e que todos sejamos iguais perante a lei. Freud vê, num ideal político, a manifestação de um fenômeno de rivalidade em relação com o irmão.
Outras literaturas
Na sequência do episódio, o professor Daniel indica uma série de textos recentes sobre a questão, fazendo pontuações sobre os mesmos.
a) Primogênito – O Estigma de ser o Primeiro (Miguel Ángel Gianelli)
Obra que mostra que há elementos do trauma que marcam a posição do filho que veio primeiro, implicando em uma posição deste com relação ao outro que acabou de vir. Material disponível em espanhol.
b) A Culpa Fraterna (Paulina Landolfi)
Nesta obra, Paulina Landolfi mostra como, em uma relação entre irmãos, quando um é tratado de forma mais atenciosa, faz aparecer o outro como deslocado de atenção, mas, ao mesmo tempo, de alguma forma privilegiado.
“Quer dizer, pode ser que os pais, as mães, os cuidadores, as cuidadoras deem mais atenção a um dos filhos, a uma das filhas, em detrimento da atenção do outro, mas não porque o considerem melhor, senão porque, justamente, o consideram com mais necessidade de proteção. E Paulina Landolfi diz que aquele que não recebe essa atenção aparece como um filho privilegiado, mas aparece como um filho privilegiado por culpa. ” – nos coloca o professor, acrescentando: “Há uma espécie de despertar, de acordar, de uma culpa fraterna, de uma culpa como irmão, que não foi o mais atendido, mas, de algum modo, está em uma situação de segurança maior e, por isso, de menos atenção. ”
c) Lições Psicanalíticas sobre irmãos e irmãs (Paul-Laurent Assoun)
Neste livro, o autor coloca que a chegada ao mundo de um irmão, ou de uma irmã serviria efetivamente de incentivo à curiosidade infantil. Esse recém-chegado indesejado, já que passa a ocupar o lugar que era do primogênito privilegiado, é aquele que suscita o trauma de acordar a pulsão de saber na formulação da pergunta: de onde vem as crianças?
“O irmão mais velho, a irmã mais velha, diante da chegada desse segundo indesejável, aparece como alguém que se interroga pela sexualidade, se interroga pela origem das crianças. Ele [Assoun] diz aqui que a investigação é de caráter indutivo, porque as pessoas, em geral, não trabalham com universais. E, a partir daí, podemos dizer que o primogênito aparece como alguém que vai desenvolver uma certa curiosidade, um certo saber, uma certa tentativa de desejo de se interrogar pela origem dos outros e das coisas.” – comenta o professor sobre o que é apresentado na obra.
Material disponível em espanhol.
Conclusão
Como vimos existem vários trabalhos em psicanálise, em várias línguas e produzidos em várias épocas distintas que versam não só sobre o problema da relação entre as crianças e seus pais, mas também sobre a questão da fraternidade, sobre a relação de amor e de ódio, de cooperação e de rivalidade entre irmãos. A fraternidade como algo que se compõe do que Freud chamava de “ambivalência afetiva”
Para encerrar Daniel nos remete ao texto de Jacques Lacan de 1938 “Os Complexos Familiares na Formação do Indivíduo”, disponível no volume Outros Escritos, onde ele vai apresentar três complexos:
Complexo de Desmame
Complexo de Intrusão
Complexo de Édipo
O Complexo de Édipo seria, segundo Lacan, precedido por um complexo anterior, que é justamente essa relação tensa com outro semelhante. E este seria então precedido pelo complexo de desmame, ou seja, pela separação com a mãe.
A culpa fraterna, o ciúme, a rivalidade entre irmãos não é um problema menor em psicanálise e sim constituem elementos importantes que permitem a elaboração do próprio sujeito.
Até nosso próximo artigo.
Assista ao episódio completo:
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Transcrição e adaptação:
Gustavo Espeschit é psicanalista, professor e escritor. Pós-graduado em Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica pelo Instituto ESPE/UniFil e Pós-graduado em Clínica Psicanalítica Lacaniana pela mesma instituição. Formado em Letras Inglês/Português com pós-graduação em Filosofia e Metodologia do Ensino de Línguas.
Autor do episódio:
Daniel é psicanalista, pesquisador e professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor e Mestre em Filosofia pela Unicamp, com pós-doutorado na Michigan State University nos EUA e em Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn na Alemanha. Autor de diversos livros de Filosofia e Psicanálise. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros sobre filosofia e psicanálise.
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